sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Evolução da periodização no futebol: uma questão epistemológica (Parte 1)

Texto retirado  do site da Universidade do Futebol, este artigo de extrema relevância que nos faz refletir melhor sobre nosso  AMADO FUTEBOL.

“Será que no futebol ganha quem salta mais? 

Quem corre durante mais tempo? Quem é mais rápido? 

Ou será que normalmente ganha quem joga melhor futebol?”

Uma análise sobre a preparação física e os treinamentos, suportados pela abordagem sistêmica
William Sander Figueiredo,Renato Buscariolli de Oliveira,Renato Buscariolli
A palavra “periodização” deriva da palavra “período” e nada mais é do que a divisão do tempo em pequenos seguimentos, ou ciclos de treinos, com características e objetivos específicos determinados de acordo com a especificidade de cada desporto. O objetivo desta divisão é facilitar a organização e adequação das cargas de esforço para cada momento do ano competitivo visando o aumento da performance.

Tradicionalmente, a periodização do treino tem assentado numa base predominantemente referenciada aos aspectos de adaptação morfológica, fisiológica ou bioquímica do organismo. Esta perspectiva, embora produtiva quando se pretende resolver questões mais restritas, apenas traduz uma visão parcelar e fragmentada do processo de treinamento em modalidades coletivas complexas como o futebol. Nesse sentido, citamos abaixo as duas primeiras “escolas” de periodização, bastante solidificadas e difundidas na ciência do treinamento. 

A primeira delas (também denominada “tradicional”), originária do Leste Europeu e proposta pelo soviético Lev Pavlovic Matveiev em 1950, caracteriza-se pela divisão da época desportiva em períodos, estruturados para atingir “picos de forma” em determinados momentos competitivos. Este modelo de preparação confere primazia à variável física, assente numa preparação geral e não possui qualquer ligação com a forma de jogar. Deste modo, preconiza um processo abstrato centrado nos fatores da carga física, através de métodos analíticos. A segunda “escola” (também denominada “contemporânea”), com origem nos países do Norte da Europa e América do Norte tem como ícone Yuri Verkhoshansky e tentou transcender o caráter universal da primeira tendência, dando grande importância ao desenvolvimento das capacidades físicas exigidas na competição. Desde então, exacerbou-se a avaliação das cargas através dos testes físicos procurando conhecer assim, a forma dos jogadores. Além disso, esta tendência de treino caracteriza-se por desenvolver a variável física, técnica e psicológica em separado. 

Na busca de adequar a preparação dos atletas às necessidades requeridas no futebol moderno e a tentativa de integrar as diferentes áreas do conhecimento ligadas à modalidade, novas propostas de periodização surgiram: cargas ondulatórias (Tschiene, 1990) e o modelo de Cargas Seletivas (Gomes, 2002). Essas novas propostas (principalmente a última) podem se adentrar em uma tendência designada “Treino Integrado” - onde os aspectos físicos, técnicos e táticos são desenvolvidos conjuntamente – e procuram promover uma maior semelhança com as exigências da competição conferindo uma grande importância ao jogo e à sua especificidade. 

Um “pit stop” reflexivo do conteúdo abordado até aqui nos permite visualizar que a tendência da preparação física no futebol ao longo dos tempos é de se aproximar cada vez mais do jogo em si. Essa aproximação por sua vez, coloca essa área no mesmo patamar de outras não menos importantes (psicologia, nutrição, pedagogia, etc) evidenciando a tão citada interdisciplinaridade. Na prática isso significa que a preparação física não mais será o “norte” no planejamento de uma equipe para uma determinada competição. Isso quer dizer que o preparador físico tonar-se-á “menos importante?” Ou que não será mais necessária a preparação física? Ou agora serão os técnicos e técnicos adjuntos que se responsabilizarão por essa área, acabando com a figura do “especialista” – preparador físico - no futebol? Caro leitor, muito calma nessa hora...

Como já explícito, a estruturação de todo o processo de planejamento e periodização do treino em futebol, passou e ainda passa pelo componente dito “físico”. A periodização física convencional está instituída no futebol e apesar de parecer desajustada ainda prevalece metodologicamente como núcleo central de preparação. Teodorescu (2003) salienta que grande parte das opiniões e teorias da psicologia, da pedagogia bem como da teoria da educação física sobre o jogo, são formuladas a partir de posições biológicas e biogizantes. De fato, no desporto de rendimento está fortemente enraizada a crença de que a excelência no desempenho desportivo pode ser obtida mediante a melhoria na condição física (Tani, 2001). Historicamente, esta crença deve-se à grande influência exercida pela Fisiologia do Exercício, que apresenta uma perspectiva eminentemente energética de movimento. 

Surge-nos assim vincado aquilo que podemos designar por um paradigma da dimensão física do treino, que realça a importância da dimensão física no seio do Planejamento e Periodização. Ao referenciarmos a performance a partir de fatores energéticos, biomecânicos e das características fisiológicas dos jogadores, os comportamentos destes serão perspectivados enquanto produto de uma maior ou menor adequação do organismo às exigências energéticas e funcionais do jogo, tendo em conta a unidade entre o estímulo e a resposta, desconsiderando as configurações tácticas que os induzem (Garganta et al, 1996). Isso impede uma tomada de consciência molar dos problemas do jogo, dado que não serão equacionadas as interações que se estabelecem no seio da equipe, entre os jogadores, face à relação de oposição – cooperação. 

Assim sendo, apesar da investigação científica ter inferido uma relação causa-efeito de caráter bio-fisiológico na aplicação dos métodos de treino baseados na coerência estrutural daquilo que convencionalmente se denomina componentes da carga (volume, densidade, intensidade e freqüência), isso nada nos elucida sobre a eficácia do comportamento motor utilizado pelos jogadores para a resolução de uma situação competitiva qualquer. Compreender a ação biológico-fisiológica dos exercícios é importante e necessária por parte daqueles que estão aplicando o treino para conhecer o efeito imediato, assim como os efeitos crônico-adaptativos de uma determinada sessão, microciclo ou mesociclo (Tscheine, 1987). No entanto, as modalidades desportivas de caráter aberto, como o futebol, não podem desenvolver os seus métodos de treino partindo simplesmente do manuseamento das denominadas componentes da carga.

Dessa forma, podemos dizer que a “preparação física” no futebol atravessa de forma lenta e gradativa (como é o progresso da ciência) uma mudança paradigmática e epistemológica. Os fatos nos levam a crer que não mais o componente biológico seja o norteador do planejamento de uma equipe, independente do seu nível e/ou faixa etária. A Periodização (divisão) continua, porém muda o seu foco. Talvez a “Periodização Tática” (“processo de preparação centrado na operacionalização de um “jogar” através da criação e desenvolvimento contínuo do Modelo de Jogo” – Vitor Frade, 2006) que é para muitos algo novo, desconhecido, seja a norma dentro do futebol em um futuro próximo. Cabe a nós, profissionais da bola, “corrermos atrás” das mudanças, nos adequarmos e nos reciclarmos. A abordagem sistêmica cada vez mais ganha espaço dentro dessa modalidade. Contudo, profissionais completos, “sistêmicos”, “complexos”, holísticos e que se atualizam constantemente serão necessários para que essa abordagem se efetive verdadeiramente. 

Talvez hoje o “componente físico” esteja se redimensionando dentro do futebol e não simplesmente sendo “deixado de lado”. Analogamente, o mesmo ATP (sigla referente à adenosinatrifosfato, nossa “moeda energética” dentro do metabolismo) que era responsável por um jogador correr em média 6 km por partida na década de 60, hoje permite que os atletas corram cerca de 12 km. O jogo é o mesmo, as regras são as mesmas, o ATP é o mesmo. Foram apenas 50 anos de evolução. O que mudou? Para terminar essa parte do texto (já que o assunto não se esgotou nesse documento), terminamos com uma pergunta capciosa e polêmica. 

“Será que no futebol ganha quem salta mais? 

Quem corre durante mais tempo? Quem é mais rápido? 

Ou será que normalmente ganha quem joga melhor futebol?”

BIBLIOGRAFIA

“A Ciência do Desporto a Cultura e o Homem”. Jorge Bento e Antonio Marques. Universidade do Porto. Porto, 1993.

“O Planeamento e a Periodização do Treino em Futebol – Um estudo realizado em clubes da Superliga”. Tese de Mestrado. Pedro Manoel de Oliveira Santos. Universidade Técnica de Lisboa, 2006.

“Do pé como técnica ao pensamento técnico dos pés. Dentro da caixa preta da Periodização Tática. – Um estudo de Caso”. Trabalho Conclusão de Curso. Marisa Silva Gomes. Universidade do Porto, Porto, 2006.

* Renato Buscariolli de Oliveira é bacharel em Treinamento Desportivo, mestrando em Biologia Funcional e Molecular - IB, pós-graduando em Bioquímica, Fisiologia, Treinamento e Nutrição Desportiva e membro do Laboratório de Bioquímica do Exercício - Labex, pela UNICAMP

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